Enquanto os estilistas da Program, que diz ser a “maior rede plus size do Brasil”, viajavam para os maiores centros de moda mundiais “em busca de inspiração e novas ideias”, os costureiros bolivianos que produziam peças para a marca eram submetidos a tratamento desumano. A empresa foi condenada pela Justiça em março do ano passado, mas o cativeiro dos trabalhadores resgatados não acabou: vítimas de possível servidão por dívidas, jornadas diárias de 16 horas de trabalho e até privação de alimentos, eles ainda não receberam nenhuma indenização.
O resgate aconteceu em setembro de 2020, em uma oficina de costura no bairro Casa Verde Alta, em São Paulo, quando fiscais encontraram três trabalhadores em condições análogas à escravidão. Entre eles estava uma mulher, no sétimo mês de gestação, impedida de acessar serviços de saúde. “Quando os patrões descobriram que ela estava grávida, não queriam deixar ela parar de trabalhar”, revelou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados, que é o pai da criança.
Segundo o relatório de fiscalização, a família precisava compensar aos finais de semana as horas em que a grávida saía da oficina para fazer o pré-natal. Em uma ocasião em que precisou ser atendida na emergência de uma maternidade e, com dores, não pôde trabalhar, a mulher foi penalizada com restrição de alimentação: ela e suas três filhas receberam apenas chá como jantar em uma noite, somente o café da manhã no dia seguinte e, no terceiro dia, o jejum foi total.
Apesar de dramático, esse relato não foi incluído entre os agravantes que levaram a juíza do Trabalho Cristina de Carvalho Santos a condenar a empresa por trabalho escravo, por falta de provas. Mas nem foi preciso: a sentença obriga a Anfa Indústria e Comércio de Confecções, detentora da marca Program, a pagar indenizações no valor máximo legal aos imigrantes dada “a intensidade do sofrimento ou da humilhação”.
Os trabalhadores precisavam cumprir jornadas ilegais de 16 horas ao dia e não estavam registrados formalmente como empregados. O salário médio era de R$ 800 – bem abaixo do piso da categoria, de R$1.508,20 – e havia descontos para pagar as contas de água e luz do local, o aluguel do espaço e até a comida que recebiam – forte indício de que estavam submetidos a um regime de servidão por dívidas.
Quando era necessário, trabalhávamos até as 3h da madrugada. E os patrões não pagavam os salários. Eu fiquei 3 meses sem receber”, confirmou à Repórter Brasil um dos bolivianos resgatados. Quando os prazos de entrega das encomendas era curto, também eram obrigados a costurar aos domingos.
Na sentença, a juíza Santos também determinou o ressarcimento de todos os direitos trabalhistas que foram negados ao grupo, como remuneração proporcional ao piso da categoria e às horas efetivamente trabalhadas, 13º salários, férias, recolhimento do FGTS e do INSS, e benefícios como o auxílio-creche. O valor total da condenação chega a R$367.083,44.
Entretanto, passados quase um ano e meio do resgate por trabalho escravo e dez meses desde a condenação, os três bolivianos ainda esperam o pagamento de seus direitos trabalhistas e uma indenização por danos morais, pois a empresa recorreu da decisão. “A Anfa alegou que apenas terceirizava o serviço de costura e que não tinha responsabilidade pela contratação dos três trabalhadores resgatados”, afirma o defensor público federal João Paulo Dorini, que representa os trabalhadores na ação. Mas os próprios gestores da oficina, contratados pela Program, confirmaram que o local trabalhava de maneira exclusiva para confecção de peças da marca.
Voltada ao público feminino, a Program está presente em mais de dez estados brasileiros, tendo 33 lojas físicas só em São Paulo. A marca também opera no e-commerce – no site da marca, os shorts que eram costurados pelos bolivianos submetidos a trabalho escravo custam entre R$ 80 e R$ 175, a peça. A Repórter Brasil entrou em contato por e-mail e por telefone com a Anfa, mas não obteve retorno. (Fonte : Repórter Brasil).