“Como voltar ao emprego, se não há luz ou água potável em casa, se não há casa, pois suas residências estão debaixo d’água?”, questionam as entidades, em nota – AEN
Um grupo de 15 entidades nacionais e do Rio Grande do Sul emitiu uma nota, nesta segunda-feira (13), reivindicando ao governo federal que edite decreto, em regime de urgência, alterando a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para assegurar os empregos e salários das/os trabalhadoras/es ameaçadas/os de demissão durante as enchentes que atingem o Rio Grande do Sul.
Segundo representantes do Grupo de Assessoria Trabalhista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Gatra, a entidade tem recebido uma série de denúncias de trabalhadores que afirmam terem sido ameaçados de cortes salariais e de demissões caso não retornem a seus postos de trabalho imediatamente.
“Como voltar ao emprego, se não há luz ou água potável em casa, se não há casa, pois suas residências estão debaixo d’água? Como trabalhar, se familiares e amigos estão, a todo momento, necessitando de resgate? Se essas pessoas perderam parentes, roupas, documentos?”, questionam as entidades, em nota.
O documento das 15 entidades propõe que um decreto presidencial altere os artigos 462, 473 e 477 da CLT, vedando descontos salariais e a dispensa de trabalhador, “independentemente da apresentação de atestado, pela ausência ao trabalho em razão de situação de emergência ou calamidade pública na região em que o/a trabalhador/a mora ou trabalha, pelo tempo necessário à normalização das condições de existência”.
Na avaliação das entidades, as empresas gaúchas têm adotado um discurso supostamente “altruístas” de “atendimento à população” para respaldar a pressão que têm exercido sobre o trabalhador. Para o grupo, tal imposição de retorno aos postos de trabalho contraria a Constituição Federal, “fundada na preservação da dignidade humana”, e se qualifica como “ato ilícito”, previsto no artigo 187 do Código Civil e no artigo 9º da CLT.
Pela garantia da dignidade humana dos trabalhadores atingidos pela calamidade pública no estado do RS
Em meio ao desastre climático que assola o Rio Grande do Sul, tem-se multiplicado o número de relatos de trabalhadore/as obrigado/as a retornar para seus trabalhos, sob a ameaça de demissão por faltas. Fato é que muitos desse/as trabalhadore/as, para além das evidentes dificuldades de locomoção que o cenário impõe, perderam seus documentos, roupas e suas casas. Perderam afetos.
Estamos vivendo uma crise humanitária aguda, com prejuízo à integridade psicológica e física de todas as pessoas envolvidas. Não se trata apenas de uma forte chuva, que dificultou o deslocamento pela cidade, mas de uma catástrofe climática agravada por uma gestão de destruição ambiental e ausência de políticas de contenção contra enchentes.
Nos abrigos espalhados por toda a região afetada, os registros são semelhantes: trabalhadores e trabalhadoras estão sendo ameaçados/as de despedida, caso não retornem imediatamente para seus empregos. Na mídia, os empregadores contam história diversa: para atender as necessidades da população, é fundamental que seus serviços funcionem.
Em momento nenhum, porém, questiona-se a condição de retorno dessas pessoas. Como voltar ao emprego, se não há luz ou água potável em casa, se não há casa, pois suas residências estão debaixo d’água? Como trabalhar, se familiares e amigos estão, a todo momento, necessitando de resgate? Se essas pessoas perderam parentes, roupas, documentos?
O desconto em razão de falta ou a ameaça de despedida não são apenas medidas ilícitas; revelam falta de humanidade e empatia, em um cenário que se assemelha a uma situação de guerra. Além disso, contrariam a ordem jurídica. Afinal, nossa Constituição é fundada na preservação da dignidade humana. A empresa deve atender sua função social e a relação de emprego deve ser protegida contra a despedida injustificada.
Em discursos de “atendimento à população”, mascara-se o interesse em manter a mais-valia e a exploração imediata do trabalho. Revela-se, ainda, a lógica do aproveitamento do desespero humano, para a obtenção de vantagens econômicas. O “gesto altruísta das empresas”, como grandes redes de supermercado, que não param de funcionar em meio ao caos, nada mais é do que uma das tantas fábulas inventadas pelo capitalismo, para justificar a exploração a qualquer custo.
Unida frente ao desastre, a classe trabalhadora demonstra toda a sua força e solidariedade, seja por meio de doações, trabalho voluntário ou resgate de vítimas. É fundamental que em um momento como esse, a Justiça do Trabalho e o Governo também se posicionem, seja através de campanha pública, seja por meio de norma que concretamente impeça descontos de salário ou despedida, durante o período de calamidade climática, que certamente perdurará pelos próximos meses em nosso estado e, muito provavelmente, não será o último.
Impor à classe trabalhadora ainda mais penalização, diante de um quadro de tragédia humanitária como o Rio Grande do Sul vem enfrentando, seja impondo exibição de atestado, descontando salário ou despedindo, é a antítese do que significa viver em um estado democrático de direito. Qualifica-se como ato ilícito, nos termos do artigo 187 do Código Civil e do artigo 9o da CLT [Consolidação das Leis do Trabalho].
Os direitos trabalhistas são direitos humanos fundamentais, pois é com o salário que se obtém acesso ao alimento, ao remédio, à roupa ou à moradia. Não é razoável que a lógica do capital se sobreponha a isso. Essas pessoas não estão brincando, estão lutando pela vida e chorando suas perdas e seus mortos.
Nós, trabalhadora/es, estudantes, pessoas que atuamos na Justiça do Trabalho, cidadãs e cidadãos, temos o dever de defender os direitos da classe trabalhadora que, em realidade, é o direito de todos e todas a vivermos em uma sociedade melhor.
Por isso, conclamamos à adoção de decisões que efetivem a proteção constitucional e de medidas legislativas que deem conta do momento dramático que estamos enfrentando.
Em razão disso, compreendendo que a Lei nº 14.437, de 15 de agosto de 2022, não atende a necessidade de proteção em momento de crise aguda como o que enfrentamos, reivindicamos ao Governo Federal a edição, em regime de urgência de decreto que altere a Consolidação das Leis do Trabalho, nos seguintes termos, acrescentando aos respectivos artigos:
Art. 462:
§ 4º – É vedado, ainda, o desconto de salário, independentemente da apresentação de atestado, pela ausência ao trabalho em razão de situação de emergência ou calamidade pública na região em que o/a trabalhador/a mora ou trabalha, pelo tempo necessário à normalização das condições de existência;
Art. 473:
XIII. pelo tempo que se fizer necessário, enquanto durar os efeitos da situação de emergência ou calamidade pública na região em que mora ou na qual trabalha;
Art. 477C:
É vedada a dispensa de trabalhador/a enquanto vigorar a decretação do estado emergência ou de calamidade pública e, após a sua cessação, pelo período de pelo menos seis meses.